"Se você faz o que sempre fez, você obterá o que você sempre obteve. " - Anthony Robbins
Muitas vezes a parte mais humana da medicina é o discurso. Faz muito tempo que quero escrever este texto, talvez só uma madrugada de chuva e insônia poderia me dar a combinação perfeita, e essa noite chegou e talvez fique aqui escrita por muito tempo.
Já faz cerca de um ano, eu em meu jaleco branco, cabelo amarrado, estetoscópio no pescoço, pasta no ombro, prancheta na mão – uma aluna de medicina do segundo ano na aula de semiologia. Estávamos no hospital de cardiologia, depois de fazermos a história e examinarmos uma paciente o professor chamou-nos. Começou a falar de um caso muito raro, um paciente com uma cardiopatia difícil de aparecer nos plantões. Na verdade já tinham me falado deste paciente, outros alunos que já haviam examinado ele durante o plantão noturno, e outros que já haviam examinado pela manhã. Era um caso realmente fantástico, “de livro”.
Meu grupo estava ansioso por inspecionar, palpar, percutir, auscultar, aferir, organizar, sintetizar, examinar, descobrir, diagnosticar... Vi colega por colega meu fazer todos os passos, porém no meio de toda aquela ciência, comecei a observar o paciente, não como uma futura médica, mas como uma pessoa – sem esperar ver sinais e sintomas. Ele sem camisa, sentado, seguindo todos os passos de forma cooperativa, depois de cada colega meu examinar e mal dar um “tapinha” em seus ombros agradecendo, ele sorria.
Comecei a observar o sorriso, ele era negro, jovem, sorridente, compreensivo – porém, notei as olheiras, o cansaço, a magreza, a respiração profunda. Como seria estar envolto de vários alunos de medicina, professores, médicos, enfermeiras e afins. Ele não parecia assustado, porém tinha algo angustiante entre eu e ele.
Um exército de jalecos e estetoscópios aproximava-se e partia, muitas pessoas examinaram ele. Percebi que fui me deixando para trás, até que chegou a minha vez. Quando me aproximei, falei em um suspiro: - Já estamos terminando, sou a última -. Ele apenas sorriu e olhou para baixo, como tinha feito com todos os meus colegas. Examinei.
Quando terminei, chamei-o pelo nome e pedi se ele gostaria de ouvir o que tanto ouvíamos no seu coração. De repente ele sorriu, mas foi um sorriso novo. Ele concordou com a cabeça. Eu procurei um foco cardíaco segurei no peito dele e coloquei o estetoscópio nas orelhas dele. Ele abaixou a cabeça e prestou atenção, ficou todo o tempo escutando-se.
Hoje, queremos nos conectar sem vínculo, sentir sem envolver-se, cuidar sem abraçar. Será que somos solúveis e instantâneos que não podemos segurar a mão de uma outra pessoa. Quantas vezes analisamos ? Quantas vezes nos analisamos? Quantas vezes só cumprimos o protocolo? A medicina é incrível, com o passar do tempo o tato muda, os olhos mudam, os ouvidos, o olfato muda – nós mudamos, e espero poder me reconhecer no espelho.
Poucos minutos depois, senti o professor tocando minhas costas, chamando para sair do quarto para fazermos a discussão, com uma certa pressa e muito incômodo dos meus colegas. Percebendo, ele levantou os olhos cheios úmidos. Havia um brilho e um sorriso. Era como se nossos olhos tivessem ficados conectados , suspensos, cúmplices – agora ele podia ter ouvido o que tanto o examinavam.
Ele me abraçou e me agradeceu, de uma forma profunda e sincera. Nesses momentos exatamente humanos da nossa existência. Deixei meus colegas partirem, auxiliei-o a colocar sua camisa e me despedi, ele sorriu novamente, era diferente.
Quando fechei a porta, estavam todos apavorados comigo, avisando-me para eu ser cautelosa, para eu higienizar meu estetoscópio, aproveitar o tempo da aula, que eu não podia ter essa postura, e etc. Isso não fez nenhuma diferença, estava envolta por uma nuvem de consciência e com um soluço sem lágrimas preso a garganta em silêncio. Segui a aula, segui os dias, estava no hospital quando ele deu alta e ele veio e apertou minha mão e sorriu. O paciente é um universo, como diria um professor.
Mayara Floss